terça-feira, 28 de setembro de 2010

PELO DIREITO À IDENTIDADE

É altura de finalmente a lei portuguesa reconhecer que existem pessoas transexuais, simplificando as suas vidas e deixando de as remeter para a exclusão.

Trata-se de garantir o respeito pelos Direitos Humanos: uma causa que deve ser de todas e de todos nós.

EXISTEM LEIS DE IDENTIDADE DE GÉNERO NOUTROS PAÍSES EUROPEUS?

Sim. Exemplos positivos recentes são a Espanha (2007) e o Reino Unido (2005). Aliás, há duas décadas que existem recomendações do Conselho da Europa, bem como do Parlamento Europeu, no sentido da criação de legislação que garanta o reconhecimento da identidade de género das pessoas transexuais. Recentemente, o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, depois de reunir com activistas transexuais de toda a Europa (e também da ILGA Portugal), recomendou com veemência a criação de uma Lei de Identidade de Género nos países em falta nesta área, frisando ainda a importância da não-inclusão de requisitos atentatórios dos Direitos Humanos como a exigência de cirurgias genitais ou de esterilidade irreversível.

PORQUE É FUNDAMENTAL UMA LEI DA IDENTIDADE DE GÉNERO?

Para que as pessoas transexuais possam finalmente ter direito à sua identidade. Ou seja, para que o seu nome e sexo legais – que constam da sua identificação e documentos oficiais – possam estar de acordo com a sua identidade, sem necessidade de recurso aos tribunais.

A actual dependência dos tribunais constitui um convite à exclusão social das pessoas transexuais, porque com ela não é possível a construção de um projecto de vida. Durante muitos anos, é praticamente impossível o acesso ao emprego, à educação, a bens e serviços – e à cidadania. Operações tão simples como o uso de um cartão de débito ou tão relevantes como o exercício do direito de voto tornam-se um pesadelo. E o risco de assédio e violência é também particularmente preocupante, como nos relembra o assassinato precedido de tortura e crueldade de Gisberta Salce Júnior, em 2006.

A única solução que permite às pessoas transexuais terem uma cidadania plena e acesso a todos os seus direitos é a alteração da sua documentação legal para reflectir a sua identidade. E é fundamental que esse procedimento seja célere, transparente, acessível e abrangente.

VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS TRANSEXUAIS

Em Portugal, uma pessoa transexual tem que recorrer aos tribunais para que o seu sexo e nome legais sejam alterados e fiquem de acordo com a sua identidade de género.

Segue-se burocracia e lentidão, humilhação e desrespeito pela intimidade, a sujeição a visões caricaturais do que devem ser os homens e as mulheres transexuais - e a exclusão arbitrária de muitas pessoas transexuais.

UMA PESSOA TRANSEXUAL CONSEGUE QUE O TRIBUNAL RECONHEÇA A SUA IDENTIDADE DE GÉNERO?

Depende. Existe apenas jurisprudência sobre o assunto e esta não é vinculativa. Mesmo estando satisfeitos os requisitos habituais, houve vários casos em que a decisão foi negativa - o que introduz uma incoerência e instabilidade legais inaceitáveis.

'[...] nunca poderá convir ao Tribunal a deixar-se tomar por uma qualquer “pietas” [piedade] em relação à demanda do transsexual, atribuindo reconhecimento a um facto de mudança de sexo'
15ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, 2003

O não-reconhecimento da identidade de género de uma pessoa transexual já foi classificado por diversas vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos como uma violação do direito ao respeito da vida privada salvaguardado no artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

COMO É O PROCESSO EM TRIBUNAL?

Longo e humilhante. Desde logo, uma pessoa transexual só pode entrar com um processo em tribunal no fim do processo clínico de transição, embora muito antes a sua aparência já não coincida com a documentação. Depois, o próprio processo em tribunal dura anos – e uma eventual decisão desfavorável implica ainda recursos.

Para além disso, são postas questões extraordinariamente íntimas sobre todo o processo de vida da pessoa transexual, e o tribunal pode até requerer que esta seja examinada por técnicos forenses, de forma invasiva e desnecessária.

'O seu sexo anatómico é caracterizado (...) pela presença de uma vagina de 10cm de profundidade, de 3 a 4cm de diâmetro, elástica e não causando dor à introdução do espéculo, apta à penetração do pénis erecto'
7º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, 1994

OS REQUISITOS HABITUAIS DOS TRIBUNAIS VIOLAM OS DIREITOS HUMANOS?

Sim. Para além da exigência de padrões de género arbitrários, os requisitos habituais incluem a obrigatoriedade de cirurgia genital e a esterilidade irreversível.

'A Autora nunca fala de assuntos relacionados com mulheres, como decoração, culinária e moda'
Sentença do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Almada, 2006

'Bem pode dizer-se, baseando-nos em Aristóteles, que a fêmea é o animal que nasce vocacionado para gerar no corpo outro ser.'
Acórdão da Relação de Lisboa, Secção Cível, 1986

‘(...) entende-se que a admissibilidade legal da mudança voluntária de sexo deve assentar nos seguintes requisitos: (...) ter sofrido intervenção cirúrgica modificativa dos caracteres exteriores do sexo'
3º Juízo/2ª Secção do Tribunal da Comarca de Oeiras, 1983

'Tais tratamentos são absolutamente irreversíveis e permanentes, tornando a pessoa A. incapaz de procriar (quesito 17º)'
13º Juízo Civil da Comarca de Lisboa, 1996

É importante frisar que existem pessoas transexuais que não desejam ou não podem efectuar uma cirurgia genital. É que muitas das restantes cirurgias e terapias no processo clínico de transição acabam por ser por vezes mais importantes para que, no quotidiano, haja o reconhecimento social de que se está perante um homem ou uma mulher.

Há um consenso científico de que a identidade de género não depende da vontade de realizar uma cirurgia genital. Impor a obrigatoriedade desta cirurgia para o reconhecimento da identidade é assim uma violação inaceitável do direito à integridade física (art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Da mesma forma, a exigência de esterilidade irreversível é, por sua vez, outra violação flagrante dos Direitos Humanos.

Cada pessoa deve ser livre de escolher os procedimentos médicos a que quer sujeitar-se, mediante recomendações de profissionais de saúde que podem ajudar a avaliar os respectivos riscos.

PARA QUE TODAS AS PESSOAS POSSAM FINALMENTE TER DIREITO À SUA IDENTIDADE DE GÉNERO.
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PROJECTO TRANSFORMATION
Esta publicação tem o apoio da ILGA-Europe no âmbito do seu Human Rights Violations Documentation Fund. As opiniões expressas no documento não reflectem necessariamente qualquer posição oficial da ILGA-Europe.

 
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